Review de Blue Prince: Desvendando os Segredos da Mansão Mt. Holly​

Blue Prince

A primeira coisa que você precisa saber sobre Blue Prince é que nada faz sentido — pelo menos, não de imediato. Nada é entregue com clareza, nada é dado de bandeja. Este é um jogo que te encara nos olhos e sussurra: “você que lute”. E essa luta, estranhamente, é o que o torna tão fascinante. Prepare-se para uma experiência onde o fracasso é inevitável, os erros são anotados e o progresso… bom, o progresso é subjetivo.

Criado por Honda Ross, do estúdio Dogubomb, e publicado pela Raw Fury, Blue Prince é um daqueles jogos que parecem ter sido retirados diretamente da mente de alguém obcecado por labirintos mentais, arquitetura impossível e lógica invertida. O conceito é simples e insano ao mesmo tempo: você herda uma mansão. Mas não qualquer mansão. Uma que muda de forma todos os dias, onde você precisa construir o caminho à medida que avança, tomando decisões baseadas em cartas de sala. Ah, e tem um quarto secreto, o 46º, que você precisa encontrar para se tornar o legítimo proprietário do lugar. Simples? Não mesmo.

Você constrói a casa. E ela destrói você.

Tudo começa na sala de entrada. Três portas. Três escolhas. Ao clicar em uma delas, você será apresentado a três cartas. Pode ser um banheiro, um jardim, uma sala de música… ou algo muito mais esotérico, como uma biblioteca giratória ou uma sala que rouba suas moedas. Escolha uma carta. Abra a porta. Agora essa é a próxima sala da sua mansão. Você constrói a casa enquanto a explora. Isso é genial e desesperador ao mesmo tempo.

A casa inteira se constrói em um grid 5×9, e você precisa conectar as salas de maneira funcional, ou seja, portas precisam levar a mais portas. Um beco sem saída pode matar sua run. Literalmente. Escolhas erradas, mesmo que feitas cedo, têm consequências duras e implacáveis. Já pensou em priorizar uma sala cheia de tesouros, mas que não tem nenhuma saída? Parabéns, você acabou de se trancar em um canto do mapa. Espero que tenha gostado da vista.

Mas a beleza do jogo está justamente nisso. Você não está simplesmente jogando um quebra-cabeça. Você está jogando um quebra-cabeça que se desmonta e remonta sozinho, enquanto você ainda está tentando entender onde estava a peça anterior. Há um charme cruel em saber que, por mais que planeje, a casa pode — e vai — te pregar peças.

Cada passo conta. Literalmente.

Aqui entra a mecânica que realmente transforma Blue Prince em algo memorável: o sistema de “passos”. Você começa cada dia com 50. Cada vez que atravessa uma porta, perde um. Chegou ao fim dos passos? Fim da run. O jogo reseta. Tudo desaparece: chaves, itens, mapas, progresso. Tudo. Só resta o que está na sua cabeça. Suas memórias. Suas anotações. Sua experiência.

E isso transforma cada decisão em um pequeno drama. Será que vale a pena voltar 10 passos para abrir aquela sala trancada agora que você tem uma chave? Ou é melhor seguir adiante, torcendo para encontrar algo mais útil? Você passa mais tempo olhando o mapa da mansão do que andando por ela. Contando passos. Refazendo trajetos mentalmente. É um exercício de logística com toque de ansiedade.

O jogo não perdoa descuidos. Esquecer onde deixou uma chave especial, ou não lembrar se aquela sala do canto superior tinha saída, pode custar uma run inteira. Mas ao mesmo tempo, cada run perdida carrega consigo conhecimento — e é isso que você leva adiante. Jogar Blue Prince é um ciclo de tentativa, erro e aprendizado que não castiga, mas desafia.

Enigmas espalhados em pedaços de mundo

A mansão, com suas 45 salas possíveis, está repleta de puzzles — alguns discretos, outros escancarados. Alguns são autossuficientes, como o tabuleiro de dardos matemático na sala de sinuca. Outros se espalham por várias salas e dias. Você pode encontrar uma estátua com um código no terceiro dia de jogo, e só entender o que ele significava duas semanas depois, quando ver o mesmo símbolo gravado em um diário antigo dentro de um observatório giratório.

Esse tipo de construção narrativa e lógica fragmentada faz com que Blue Prince exija muito mais do que habilidade com puzzles. Ele exige atenção, memória e principalmente: anotações. Sim, você vai precisar de papel e caneta. Diagrama de salas, códigos, símbolos, datas, locais. Você vai virar aquele jogador com páginas rabiscadas, mapas semi-inventados e flechas ligando informações que talvez não tenham nada a ver entre si. Mas eventualmente… elas terão.

O jogo parece te provocar constantemente. A sensação de “isso quer dizer algo” vai te assombrar. Você vai sair para trabalhar ainda pensando naquela combinação de retratos ou na sequência de passos no jardim secreto. Alguns puzzles levaram dias reais para que eu finalmente compreendesse. E quando a compreensão veio, foi seguida por um grito de “AHÁ!” digno de detetive de romance noir. Ou, no meu caso, um sonoro “eu sou um gênio!” seguido imediatamente por um “como não vi isso antes?”.

Uma casa que se lembra — e muda com você

Apesar do reset diário, Blue Prince não é um roguelike punitivo. Há permanência. Há evolução. À medida que avança, você desbloqueia possibilidades: pode, por exemplo, ajustar o baralho de salas para aumentar a chance de certas cartas aparecerem. Pode encontrar atalhos permanentes que facilitam trajetos. Pode inclusive modificar salas para que tenham características diferentes na próxima run.

E há algo ainda mais interessante: você pode preparar o futuro. Encontrou um item valioso mas está sem espaço? Deixe no guarda-volumes. Ele estará lá amanhã. Descobriu que uma sala sempre contém um pacote especial se for ativada no dia certo? Prepare-se. De certa forma, o jogo te permite jogar cooperativamente com seu “eu do futuro”.

Essa mecânica de legado entre runs transforma Blue Prince em algo ainda mais especial. Porque mesmo quando você sabe que não vai alcançar o 46º quarto hoje, você joga com propósito. Está plantando o sucesso de amanhã. Criando possibilidades. Você não é só um explorador — você está moldando a mansão com intenções.

E o 46º quarto?

Não. Eu não vou te contar como é. E sinceramente, espero que você não descubra por meio de um guia. Chegar lá é uma jornada. Um processo de camadas e pistas entrelaçadas. Quando finalmente atravessei aquela porta, depois de dezenas de tentativas, eu me senti dono daquele lugar. Não apenas porque conquistei algo difícil, mas porque entendi a casa. Ela deixou de ser um mistério e virou minha casa. E isso tem um peso simbólico muito forte.

E mesmo depois de “terminar” o jogo, você não termina. Há segredos que ainda não descobri. Portas que nunca abri. Códigos que ainda não decifrei. O 46º quarto não é um fim. É um ponto de virada.

Técnica, arte e alma

Visualmente, Blue Prince é elegante na simplicidade. Os gráficos são em primeira pessoa, com uma estética que mistura o limpo e o desconfortável. Tudo é bonito o suficiente para ser encantador e estranho o bastante para manter a inquietação. Cada sala tem sua própria identidade visual e sonora. A trilha é minimalista, mas eficaz. Um piano, um ranger de assoalho, um sussurro ao longe. Tudo soma para essa sensação de que você está em um lugar importante. Um lugar com história. Um lugar que observa você.

Conclusão: uma joia rara de design e ousadia

Blue Prince é difícil de descrever porque ele se recusa a caber em qualquer molde tradicional. Ele é um jogo de estratégia, sim. Mas também é uma obra de arte interativa. É um board game que se move. Um enigma que pensa. Uma casa que fala — mesmo sem dizer uma palavra.

Você vai errar. Vai se perder. Vai se sentir burro. Vai rir. Vai gritar. Vai arrancar folhas do caderno achando que tudo está errado. E depois vai descobrir que não — você estava quase lá o tempo todo.

Se você tem paciência, curiosidade e uma quedinha por jogos que desafiam mais do que seus reflexos, Blue Prince não é só recomendado. É obrigatório.

Prepare o café. Pegue papel e caneta. Mapeie. Ande. Leia tudo. Volte. Recomece. E acima de tudo: ouça a casa. Ela está tentando te contar algo.