Review de South of Midnight: Uma Jornada Gótica pelo Sul Profundo

Há jogos que tentam capturar atmosferas. Poucos conseguem. South of Midnight não tenta ser um retrato romantizado do sul dos Estados Unidos, tampouco cai na caricatura. Em vez disso, ele se estabelece como um retrato sincero — doloroso, belo, incômodo, carinhoso. É uma carta de amor com feridas abertas, cheia de silêncios, rangidos de madeira e orações sussurradas em meio ao som de trovões distantes.

Hazel Flood é o coração desse mundo. Ela não é heroína em busca de glória ou vingança. Ela é filha, vizinha, sobrevivente. Quando um furacão arranca sua mãe do mapa e deixa um rastro de caos mágico e emocional, Hazel parte em uma jornada que não se trata apenas de reencontro. Ela está tentando entender como continuar, como salvar o que dá, e aceitar o que já não pode ser salvo.

Folclore como espelho e ferida

O Sul profundo dos Estados Unidos tem mitos próprios, e o jogo da Compulsion Games os trata com uma reverência pouco vista. Criaturas como o Rougarou, Huggin’ Molly e Two-Toed Tom aparecem não como monstros de manual, mas como expressões de traumas humanos, encarnações de medos, vergonhas e histórias mal resolvidas.

Ao invés de apenas derrotar esses seres, Hazel precisa enfrentá-los em outro nível: reconhecendo suas origens, entendendo sua dor, e, muitas vezes, ouvindo. Em tempos de narrativas baseadas em poder e confronto, é revolucionário — e profundamente tocante — que South of Midnight escolha o cuidado e a escuta como formas de combate.

Esse foco transforma cada confronto em uma oportunidade de introspecção. Não se trata apenas de limpar áreas ou avançar na campanha. Cada encontro é uma peça de um quebra-cabeça emocional, e cada pedaço da história revela camadas de cultura, perda e resistência.

Estética como expressão de identidade

Visualmente, South of Midnight impressiona desde os primeiros minutos. Seu estilo remete ao stop-motion, com movimentos deliberadamente menos fluidos, texturas táteis e cores que parecem ter saído de ilustrações de contos góticos. O mundo é carregado de personalidade — das paredes descascadas de casas à beira da estrada aos cartazes desbotados de festas de igreja. Tudo evoca uma realidade tão específica que até quem nunca pisou no Sul sente que está acessando algo íntimo.

É mais que estilo. É substância. O visual do jogo reforça o que está sendo dito o tempo inteiro: este é um lugar onde o passado pesa, onde os gestos cotidianos têm significados profundos, onde a beleza e a decadência andam de mãos dadas.

A trilha sonora, assinada por Olivier Derivière, é outro destaque. Com raízes no blues, country e gospel, ela é praticamente uma personagem. Cada acorde carrega emoção. Cada refrão parece ecoar gerações de vozes. É música com cheiro de madeira molhada, de terra depois da chuva, de lamento e redenção.

A magia está nos detalhes

South of Midnight não subestima o jogador. Não há exposição forçada, tutoriais didáticos ou trilhos óbvios. O jogo confia que você vai observar, escutar e sentir. Os objetos da infância de Hazel que se tornam armas mágicas — como uma boneca ou uma garrafa de lembranças — não são apenas artifícios de gameplay. São símbolos. E, como tudo no jogo, carregam histórias.

Os combates não são o foco, mas têm peso. O sistema é construído em torno de movimentos deliberados, como uma dança lenta com morte e dor. Inicialmente, pode parecer limitado, até frustrante. Mas logo se revela como parte da proposta narrativa: nada aqui é simples, nada é gratuito.

Morrer por pisar em um pântano ou ser engolido por uma Haint não é castigo — é aprendizado. Cada erro ensina algo sobre o mundo, sobre os riscos, sobre Hazel. E a medida que você entende os padrões e as possibilidades do combate, percebe que ele está menos interessado em espetáculo e mais em coerência emocional.

A escuta como mecânica principal

Hazel não é apenas uma guerreira. Ela é uma “Weaver”, uma figura capaz de reconectar o que foi quebrado. Essa responsabilidade nunca é romantizada. O jogo deixa claro o peso que isso representa. O Sul, como retratado aqui, é um lugar onde o abandono é frequente. Onde o sistema falha. Onde a solidariedade existe, mas também cansa.

Os encontros mais impactantes não são com criaturas sobrenaturais, mas com pessoas que erraram, que foram esquecidas, que estão tentando sobreviver com o que sobrou. A função de Hazel é ouvir, absorver, curar — sem garantir que tudo vá voltar a ser como era. Porque não vai.

A beleza está nessa honestidade. O jogo não promete redenção total, mas sugere que escutar, se importar, dar nome às dores, já é um ato de resistência.

O sul que resiste e sonha

É impossível jogar South of Midnight sem refletir sobre o peso histórico que o Sul dos EUA carrega — escravidão, racismo estrutural, abandono institucional. O jogo não faz discurso panfletário, mas esses temas estão ali, nas entrelinhas, nas ausências, nos traumas.

E é nesse contexto que a protagonista ganha ainda mais força. Hazel carrega tudo isso nos ombros e ainda assim avança, cuidando dos outros, mesmo quando ninguém cuida dela. Quando ela diz que “essas criaturas não são monstros, só estão esperando alguém que se importe”, está falando sobre muito mais do que os Haints.

É uma frase que resume o espírito do jogo. A empatia aqui não é um adorno. É uma arma. E poucas vezes vi um jogo defender isso com tanta convicção e delicadeza.

Hazel não conserta o mundo. Mas ela mostra que ainda vale a pena tentar.

Quando o jogo vira abraço

South of Midnight é um daqueles raros casos em que a soma de todas as partes gera algo maior do que se esperava. Ele é estranho, sim. Não é perfeito — há transições de gameplay confusas, combates repetitivos em alguns trechos. Mas esses deslizes desaparecem diante da força do que o jogo quer dizer.

A experiência é quase terapêutica. É sobre reconhecer dores ancestrais, acolher falhas, lidar com a ausência — e ainda assim, continuar. É, como dizem por lá, “fazer o melhor com o que sobrou”. Hazel Flood faz isso. O jogo também.

E quando os créditos sobem, o que fica não é só a lembrança de uma boa história ou de visuais bonitos. Fica a sensação de que alguém te escutou. E te mostrou que, mesmo num mundo cheio de monstros, ainda há espaço para gentileza.

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Por Rafael "Peleh"

Eu sou o Rafael, também conhecido como Peleh. Já vi de tudo no mundo dos games, por isso sou eu quem cuida das notícias e análises de games aqui no Steamaníacos!